Trecho do livro
– Comer, rezar e Amar de Elizabeth Gilbert
... Então
hoje está chovendo a cântaros, e chego cedo à escola (como sempre cheguei – CDF
!) e faço o teste.
Que teste mais difícil! Não consigo fazer nem um décimo. Sei tanto italiano,
conheço dúzias de palavras
em italiano, mas eles não me perguntam nada do que eu sei. Depois vem uma prova
oral, que é ainda
pior. Um professor de italiano bem magrinho chega para me entrevistar, falando
rápido demais, na minha
opinião, e eu deveria estar fazendo uma prova bem melhor, mas estou nervosa e
erro coisas que já sei (por
exemplo: por que falei Vado a scuola em vez de Sono andata a scuola! Isso
eu sei!).
No final
das contas, fica tudo bem. O professor de italiano magrinho olha minha prova e
escolhe a minha
turma: Nível DOIS!
As aulas
começam à tarde. Então saio para almoçar (endívias na brasa), depois volto
saltitando para a escola e
passo com ar de superioridade pelos alunos do nível um (que devem ser molto
stupido mesmo) e entro
na minha primeira aula. Com meus colegas. Só que rapidamente fica óbvio que
aqueles não são meus
colegas, e que não tenho nada que estar ali, porque o nível dois é, na verdade,
muito difícil. Tenho a
sensação de estar conseguindo não me afogar, mas é por pouco. A cada
respiração, engulo mais água.
O
professor, um cara magrinho (por que os professores aqui são tão magrinhos? Não
confio em italianos magros),
avança depressa demais, pulando capítulos inteiros do livro, dizendo:
"Isto vocês já sabem, isto aqui
também...", e mantendo um diálogo rapidíssimo com meus colegas
aparentemente fluentes. Meu estômago
se contrai de terror, e fico tentando respirar e rezando para ele não me
chamar. Assim que chega a
hora do intervalo, saio correndo da sala com as pernas bambas e disparo até a
sala da administração,
quase chorando, onde pergunto em um inglês muito claro se eles poderiam, por
favor, me passar
para uma turma de nível um. Coisa que eles fazem. E agora estou aqui. Este
professor é gordinho e fala
devagar. Bem melhor.
O
interessante em relação à minha aula de italiano é que ninguém na verdade
precisa estar aqui. Somos 12
pessoas estudando juntas, de todas as idades, de todos os cantos do mundo, e
todos vieram para Roma pelo
mesmo motivo - aprender italiano só porque estão com vontade- Nenhum de nós é
capaz de citar uma
única razão prática para estar aqui. O chefe de ninguém disse: "É
fundamental você aprender italiano
para podermos fazer nossos negócios internacionais." Todo mundo, até mesmo
o sério engenheiro
alemão, compartilha o que eu pensava ser o meu motivo particular: todos nós
queremos falar
italiano porque adoramos a sensação que o idioma nos dá. Uma russa de expressão
triste nos diz que está
fazendo aulas de italiano porque "eu acho que mereço alguma coisa
bonita". O engenheiro alemão
diz: "Eu quero italiano porque adoro a dolce vita" — a vida
bela. (Só que, com seu sotaque alemão
duro, acaba parecendo que ele está dizendo que adora a "deustsche
vita" - a vida alemã -, coisa que tenho
certeza de que ele já teve bastante).
Como descobrirei
ao longo dos próximos meses, na verdade há alguns bons motivos para o italiano
ser a língua
mais bela e sedutora do mundo, e para eu não ser a única pessoa que pensa
assim. Para entender o porquê,
você primeiro precisa entender que a Europa era uma confusão de inúmeros
dialetos derivados do latim
que aos poucos, ao longo dos séculos, se transformaram em alguns idiomas
distintos - francês, português,
espanhol, italiano. O que aconteceu na França, em Portugal e na Espanha foi uma
evolução orgânica:
o dialeto da cidade mais proeminente se tornou, aos poucos, a língua oficial da
região toda.
Portanto,
o que hoje chamamos de francês é na verdade uma versão do parisiense medieval.
O português é na
verdade o lisboeta. O espanhol é essencialmente o madrilenho. Essas são
vitórias capitalistas; a cidade
mais forte acabou determinando o idioma do país inteiro.
Na Itália
foi diferente. Uma diferença importante foi que, durante muito tempo, a Itália
sequer foi um país. Ela
só se unificou bem tarde (1861) e, até então, era uma península de
cidades-Estado em guerra entre si, dominadas por orgulhosos príncipes locais ou por outras potências européias.
Partes da Itália pertenciam
à França, partes à Espanha, partes à Igreja, e partes a quem quer que
conseguisse conquistar a
fortaleza ou o palácio local. O povo italiano se mostrava alternativamente
humilhado e conformado com toda
essa dominação. A maioria não gostava muito de ser colonizada por seus
co-cidadãos europeus,
mas sempre havia aquele bando apático que dizia: "Franza o Spagna,
purchè se magna", que, em
dialeto, significa: "França ou Espanha, contanto que eu possa comer."
Toda essa
divisão interna significa que a Itália nunca se unificou adequadamente, e o
mesmo aconteceu com a
língua italiana. Assim, não é de espantar que, durante séculos, os italianos
tenham escrito e falado dialetos
locais incompreensíveis para quem era de outra região. Um cientista florentino
mal conseguia se comunicar
com um poeta siciliano ou com um comerciante veneziano (exceto em latim, que
não chegava a
ser considerada a língua nacional). No século XVI, alguns intelectuais
italianos se juntaram e decidiram
que isso era um absurdo. A península italiana precisava de um idioma italiano,
pelo menos na
forma escrita, que fosse comum a todos. Então esse grupo de intelectuais fez
uma coisa inédita na
história da Europa; escolheu a dedo o mais bonito dos dialetos locais e o
batizou de italiano.
Para
encontrar o dialeto mais bonito, eles precisaram recuar duzentos anos, até a
Florença do século XIV. O
que esse grupo decidiu que a partir dali seria considerada a língua italiana
correta foi a linguagem
pessoal do grande poeta florentino Dante Alighieri. Ao publicar sua Divina
Comédia, em 1321,
descrevendo em detalhes uma jornada visionária pelo Inferno, Purgatório e
Paraíso, Dante havia chocado o
mundo letrado ao não escrever em latim. Considerava o latim um idioma corrupto,
elitista, e achava
que o seu uso na prosa respeitável havia "prostituído a literatura",
transformando a narrativa universal
em algo que só podia ser comprado com dinheiro, por meio dos privilégios de uma
educação aristocrática.
Em vez disso, Dante foi buscar nas ruas o verdadeiro idioma florentino falado
pelos moradores
da cidade (o que incluía ilustres contemporâneos seus, como Boccaccio e
Petrarca), e usou esse
idioma para contar sua história. Ele escreveu sua obra-prima no que chamava de dolce
stil nuovo, o doce
estilo novo" do vernáculo, e moldou esse vernáculo ao mesmo tempo que
escrevia, atribuindo-lhe uma
personalidade de uma forma tão pessoal quanto Shakespeare um dia faria com o
inglês elizabetano.
O fato de um grupo de intelectuais nacionalistas se reunir muito mais tarde e
decidir que o italiano
de Dante seria, a partir dali, a língua oficial da Itália seria mais ou menos
como se um grupo de acadêmicos
de Oxford houvesse se reunido um dia no século XIX e decidido que - daquele
ponto em diante -
todo mundo na Inglaterra iria falar o puro idioma de Shakespeare. E a manobra
realmente funcionou.
O
italiano que falamos hoje, portanto, não é o romano ou o veneziano (embora
essas cidades fossem poderosas
do ponto de vista militar e comercial), e sequer é inteiramente florentino. O
idioma é fundamentalmente
dantesco. Nenhum outro idioma europeu tem uma linhagem tão artística. E,
talvez, nenhum
outro idioma jamais tenha sido tão perfeitamente ordenado para expressar os
sentimentos humanos
quanto esse italiano florentino do século XIV, embelezado por um dos maiores
poetas da civilização
ocidental. Dante escreveu sua Divina Comédia em terza rima, terça
rima, uma cadeia de versos em
que cada rima se repete três vezes a cada cinco linhas, o que dá a esse belo
vernáculo florentino
o que os estudiosos chamam de "ritmo em cascata" - ritmo esse que
sobrevive até hoje no falar
cadenciado e poético dos taxistas, açougueiros e funcionários públicos
italianos. A última linha da Divina Comédia, em que Dante se depara com a visão de Deus em
pessoa, é um sentimento que ainda pode ser
facilmente compreendido por qualquer um que conheça o chamado italiano moderno.
Dante escreve
que Deus não é apenas uma imagem ofuscante de luz gloriosa, mas que Ele é,
acima de tudo, l'amor che move
il sole e l'altre stelle...
"O
amor que move o Sol e as outras estrelas."
Então não
é mesmo de se espantar que eu quisesse tão desesperadamente aprender esse
idioma...
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